Música

“Eu quero uma ideologia pra viver”: as buscas de sentidos na canção “Ideologia”, de Cazuza

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas

Foto retirada do Wikipédia.

Quase quatro décadas desde o seu lançamento, Ideologia, terceiro álbum de estúdio do cantor e compositor carioca Cazuza, lançado em 1988, pela gravadora Philips Records, três anos após o fim da ditadura militar, ainda provoca reflexões sobre o discurso do cantor (e do Eu-lírico) acerca dos sentidos expostos pela palavra “ideologia”. A faixa de abertura, que dá nome ao álbum, produzida por Cazuza e Roberto Frejat[1], propõe reflexões e questionamentos acerca da liberdade, da possibilidade de sonhar, ter pensamentos críticos, mas também sobre a impotência diante das incertezas da vida, após 21 anos sob um regime ditatorial.

É importante ressaltar que as complexidades envolvendo a “Ideologia” não se restringem apenas a canção, mas todo o álbum é composto por canções que não abordam apenas críticas sociais e políticas, mas também revelam uma parte intimista da vida pessoal do cantor e compositor, marcada pelo descobrimento do HIV. O álbum do carioca é lançado em um momento de transição muito importante para a história do Brasil, marcada pelo fim da Ditadura Militar e pela redemocratização nacional, com a promulgação da Constituição de 1988.

A Análise do Discurso para a canção

Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito

Foto retirada do Laboratório de Estudos Urbanos.

Sabendo que, para Michel Pêcheux, como discutido em sala, o discurso é um efeito de sentidos entre os interlocutores, ou seja, a comunicação entre os sujeitos não se dá apenas pela transmissão de informações, mas pela construção de significados compartilhados. Nesse sentido, pensar “discurso”, “sentido” e “ideologia” em um cenário político composto por incertezas coletivas, vividas por muitos brasileiros, e pessoais, requer uma atenção maior para o contexto da sociedade naquela época. A busca do cantor/Eu-lírico por uma ideologia é muito significativa, uma vez que ele faz parte da geração que cresceu nas mazelas da Ditatura, sonhando que “ia mudar o mundo”, mas depara-se com as incertezas das mudanças que aconteciam no país.

Segundo o Professor Cleudemar Fernarndes, em Análise do Discurso – reflexões introdutórias “Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico daqueles que a empregam.” (FERNANDES, 2008, p.14). Dessa forma, ao pensar os efeitos de sentidos postos pela palavra “Ideologia”, na música de Cazuza, deve-se levar em consideração o cenário político do país naquela época, uma vez que o Brasil passava por grandes mudanças históricas; a forma como parte da composição é marcada por uma voz coletiva; e também é marcada por uma subjetividade do próprio cantor/Eu-lírico.

“O meu prazer é risco de vida”

Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

Foto retirada do site Audiograma

A “ideologia” que o Eu-enunciador precisa, soa como um sinônimo de “motivo”, já que ele descobre o HIV e precisa de um significado para seguir em frente. A estrofe “O meu prazer//Agora é risco de vida//Meu sex and drugs//Não tem nenhum rock ‘n’ rol”, marca muito bem a forma como ele via-se diante da situação. Ele, antes identificado com os ideais de liberdade e rebeldia, agora, vê-se em um contexto em que esses prazeres se transformam em ameaças reais à sua vida, por isso, a busca constante por um(a) “ideologia[motivo] para viver”.

“Os meus sonhos foram todos vendidos”

Eu vou pagar
A conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Ah, saber quem eu sou

A euforia com o fim da Ditatura Militar, que fazia o menino sonhar em mudar o mundo, vai perdendo o fôlego à medida que os seus sonhos são vendidos, como posto na estrofe “Os meus sonhos//Foram todos vendidos//Tão barato que eu nem acredito//Ah, eu nem acredito”, remetendo ao governo do presidente da República, na época, José  Sarney[2], do PMDB (1985-1990), em que, como exposto no Arquivo Nacional “notabilizou-se por acusações de corrupção, com acusações de superfaturamento e irregularidades em concorrências públicas” (BRASIL, 2024). Os versos mostram a desilusão enfrentada pelo sujeito discursivo com a situação econômica daquela época. Ao expressar essa frustração, não só critica a corrupção, mas também se posiciona em meio a um contexto em que as pessoas se veem desiludidas.

Fernandes menciona que “O sujeito falando remonta à perspectiva assinalada quando expusemos a noção de discurso; refere-se a um sujeito inserido em uma conjuntura sócio-histórica-ideológica cuja voz é constituída de um conjunto de vozes sociais.” (FERNANDES, 2008, p.24). Isso significa que o sujeito não é individualizado, mas sim, como o próprio autor ressalta anteriormente em seu texto “o sujeito, mais especificamente o sujeito discursivo, deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo”. (FERNANDES, 2008, p.22).

Na música Ideologia, de Cazuza, essas questões são claras, uma vez que o compositor não fala apenas sobre suas experiências pessoais, mas a sua voz (e o discurso) evoca as tensões e complicações marcadas pelo período de transição política e redemocratização que o Brasil passava. A voz de Cazuza enuncia muito bem os anseios e desejos dos jovens brasileiros da época, ao sonhar com a tão famigerada liberdade após o fim da Ditatura Militar, mas também as vozes de frustração com o contexto de corrupção em que o Brasil passava com o atual governo.

O que a “ideologia” nos diz?

Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro
Em cima do muro

Em conclusão, a música Ideologia pode apresentar diferentes formas de sentido, a depender do contexto e do público que escuta a canção, como tudo na Análise do Discurso. Para a época, a música (e o seu álbum) pode ser sido bastante provocativo, assim como o próprio Cazuza era. Já na atualidade, a música pode apresentar apenas uma forma de ver o mundo. Isso, porque, conforme o verbete no Infopédia, Ideologia é um “sistema de ideias, valores e princípios que definem uma determinada visão do mundo” (Infopédia, 2024). Assim, mesmo que a música ainda evoque grandes provocações, o seu sentido pode mudar a depender do contexto.

Ideologia
Eu quero uma pra viver

Referências Bibliográficas

30 anos da Constituição. [S. l.]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/constituinte/index.html#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Cidad%C3%A3%2C%20promulgada%20em,abusos%20de%20poder%20do%20Estado. Acesso em: 5 dez. 2024.

AGRA, G. T. S.; CARVALHO, M. W. P. L.; AZEVEDO, N. P. G. Análise discursiva das formações ideológicas nas músicas de Cazuza. XVII Congreso Internacional Asociación de Lingüística y Filología de América Latina (ALFAL 2014), João Pessoa – Paraíba, Brasil, 2014. 10 p.

BRASIL. Arquivo Nacional. José Sarney. Disponível em: https://presidentes.an.gov.br/index.php/arquivo-nacional/60-servicos/registro-de-autoridade/111-jose-sarney. Acesso em: 4 dez. 2024.

FERNANDES, Cleudemar. Análise do Discurso – reflexões introdutórias. p.10-33

IDEOLOGIA. Infopédia: Dicionários de Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ideologia. Acesso em: 6 dez. 2024.

MÚSICA Ideologia de Cazuza (significado e análise). [S. l.]. Disponível em: https://www.culturagenial.com/musica-ideologia-de-cazuza/. Acesso em: 5 dez. 2024.

TBTMDQA!: Passados 32 anos, será que encontramos a tal “Ideologia” da qual Cazuza tanto falava?. [S. l.], 16 jul. 2020. Disponível em: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2020/07/16/tbtmdqa-ideologia-cazuza-histporia/. Acesso em: 5 dez. 2024.


[1] Antes de seguir carreira solo, Cazuza foi vocalista do grupo Barão Vermelho, onde iniciou a sua carreira musical, compondo canções ao lado Roberto Frejat, com quem compôs Ideologia.

[2] “[José Sarney] ingressou no PMDB em 1984, onde se tornou candidato a vice-presidente na chapa de Tancredo Neves para a eleição presidencial de 1985. Eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral, deveriam assumir a posse em março daquele ano; contudo, o presidente Tancredo Neves, adoeceu gravemente e faleceu pouco antes de tomar posse do cargo. Assim, Sarney assumiu a presidência da República em abril.” (BRASIL, 2024)

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