“Eu quero uma ideologia pra viver”: as buscas de sentidos na canção “Ideologia”, de Cazuza
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões
Estão todas perdidas

Quase quatro décadas desde o seu lançamento, Ideologia, terceiro álbum de estúdio do cantor e compositor carioca Cazuza, lançado em 1988, pela gravadora Philips Records, três anos após o fim da ditadura militar, ainda provoca reflexões sobre o discurso do cantor (e do Eu-lírico) acerca dos sentidos expostos pela palavra “ideologia”. A faixa de abertura, que dá nome ao álbum, produzida por Cazuza e Roberto Frejat[1], propõe reflexões e questionamentos acerca da liberdade, da possibilidade de sonhar, ter pensamentos críticos, mas também sobre a impotência diante das incertezas da vida, após 21 anos sob um regime ditatorial.
É importante ressaltar que as complexidades envolvendo a “Ideologia” não se restringem apenas a canção, mas todo o álbum é composto por canções que não abordam apenas críticas sociais e políticas, mas também revelam uma parte intimista da vida pessoal do cantor e compositor, marcada pelo descobrimento do HIV. O álbum do carioca é lançado em um momento de transição muito importante para a história do Brasil, marcada pelo fim da Ditadura Militar e pela redemocratização nacional, com a promulgação da Constituição de 1988.
A Análise do Discurso para a canção
Os meus sonhos
Foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito
Sabendo que, para Michel Pêcheux, como discutido em sala, o discurso é um efeito de sentidos entre os interlocutores, ou seja, a comunicação entre os sujeitos não se dá apenas pela transmissão de informações, mas pela construção de significados compartilhados. Nesse sentido, pensar “discurso”, “sentido” e “ideologia” em um cenário político composto por incertezas coletivas, vividas por muitos brasileiros, e pessoais, requer uma atenção maior para o contexto da sociedade naquela época. A busca do cantor/Eu-lírico por uma ideologia é muito significativa, uma vez que ele faz parte da geração que cresceu nas mazelas da Ditatura, sonhando que “ia mudar o mundo”, mas depara-se com as incertezas das mudanças que aconteciam no país.
Segundo o Professor Cleudemar Fernarndes, em Análise do Discurso – reflexões introdutórias “Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim, uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico daqueles que a empregam.” (FERNANDES, 2008, p.14). Dessa forma, ao pensar os efeitos de sentidos postos pela palavra “Ideologia”, na música de Cazuza, deve-se levar em consideração o cenário político do país naquela época, uma vez que o Brasil passava por grandes mudanças históricas; a forma como parte da composição é marcada por uma voz coletiva; e também é marcada por uma subjetividade do próprio cantor/Eu-lírico.
“O meu prazer é risco de vida”
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

A “ideologia” que o Eu-enunciador precisa, soa como um sinônimo de “motivo”, já que ele descobre o HIV e precisa de um significado para seguir em frente. A estrofe “O meu prazer//Agora é risco de vida//Meu sex and drugs//Não tem nenhum rock ‘n’ rol”, marca muito bem a forma como ele via-se diante da situação. Ele, antes identificado com os ideais de liberdade e rebeldia, agora, vê-se em um contexto em que esses prazeres se transformam em ameaças reais à sua vida, por isso, a busca constante por um(a) “ideologia[motivo] para viver”.
“Os meus sonhos foram todos vendidos”
Eu vou pagar
A conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Ah, saber quem eu sou
A euforia com o fim da Ditatura Militar, que fazia o menino sonhar em mudar o mundo, vai perdendo o fôlego à medida que os seus sonhos são vendidos, como posto na estrofe “Os meus sonhos//Foram todos vendidos//Tão barato que eu nem acredito//Ah, eu nem acredito”, remetendo ao governo do presidente da República, na época, José Sarney[2], do PMDB (1985-1990), em que, como exposto no Arquivo Nacional “notabilizou-se por acusações de corrupção, com acusações de superfaturamento e irregularidades em concorrências públicas” (BRASIL, 2024). Os versos mostram a desilusão enfrentada pelo sujeito discursivo com a situação econômica daquela época. Ao expressar essa frustração, não só critica a corrupção, mas também se posiciona em meio a um contexto em que as pessoas se veem desiludidas.
Fernandes menciona que “O sujeito falando remonta à perspectiva assinalada quando expusemos a noção de discurso; refere-se a um sujeito inserido em uma conjuntura sócio-histórica-ideológica cuja voz é constituída de um conjunto de vozes sociais.” (FERNANDES, 2008, p.24). Isso significa que o sujeito não é individualizado, mas sim, como o próprio autor ressalta anteriormente em seu texto “o sujeito, mais especificamente o sujeito discursivo, deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo”. (FERNANDES, 2008, p.22).
Na música Ideologia, de Cazuza, essas questões são claras, uma vez que o compositor não fala apenas sobre suas experiências pessoais, mas a sua voz (e o discurso) evoca as tensões e complicações marcadas pelo período de transição política e redemocratização que o Brasil passava. A voz de Cazuza enuncia muito bem os anseios e desejos dos jovens brasileiros da época, ao sonhar com a tão famigerada liberdade após o fim da Ditatura Militar, mas também as vozes de frustração com o contexto de corrupção em que o Brasil passava com o atual governo.
O que a “ideologia” nos diz?
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro
Em cima do muro
Em conclusão, a música Ideologia pode apresentar diferentes formas de sentido, a depender do contexto e do público que escuta a canção, como tudo na Análise do Discurso. Para a época, a música (e o seu álbum) pode ser sido bastante provocativo, assim como o próprio Cazuza era. Já na atualidade, a música pode apresentar apenas uma forma de ver o mundo. Isso, porque, conforme o verbete no Infopédia, Ideologia é um “sistema de ideias, valores e princípios que definem uma determinada visão do mundo” (Infopédia, 2024). Assim, mesmo que a música ainda evoque grandes provocações, o seu sentido pode mudar a depender do contexto.
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Referências Bibliográficas
30 anos da Constituição. [S. l.]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/constituinte/index.html#:~:text=A%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Cidad%C3%A3%2C%20promulgada%20em,abusos%20de%20poder%20do%20Estado. Acesso em: 5 dez. 2024.
AGRA, G. T. S.; CARVALHO, M. W. P. L.; AZEVEDO, N. P. G. Análise discursiva das formações ideológicas nas músicas de Cazuza. XVII Congreso Internacional Asociación de Lingüística y Filología de América Latina (ALFAL 2014), João Pessoa – Paraíba, Brasil, 2014. 10 p.
BRASIL. Arquivo Nacional. José Sarney. Disponível em: https://presidentes.an.gov.br/index.php/arquivo-nacional/60-servicos/registro-de-autoridade/111-jose-sarney. Acesso em: 4 dez. 2024.
FERNANDES, Cleudemar. Análise do Discurso – reflexões introdutórias. p.10-33
IDEOLOGIA. Infopédia: Dicionários de Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ideologia. Acesso em: 6 dez. 2024.
MÚSICA Ideologia de Cazuza (significado e análise). [S. l.]. Disponível em: https://www.culturagenial.com/musica-ideologia-de-cazuza/. Acesso em: 5 dez. 2024.
TBTMDQA!: Passados 32 anos, será que encontramos a tal “Ideologia” da qual Cazuza tanto falava?. [S. l.], 16 jul. 2020. Disponível em: https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2020/07/16/tbtmdqa-ideologia-cazuza-histporia/. Acesso em: 5 dez. 2024.
[1] Antes de seguir carreira solo, Cazuza foi vocalista do grupo Barão Vermelho, onde iniciou a sua carreira musical, compondo canções ao lado Roberto Frejat, com quem compôs Ideologia.
[2] “[José Sarney] ingressou no PMDB em 1984, onde se tornou candidato a vice-presidente na chapa de Tancredo Neves para a eleição presidencial de 1985. Eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral, deveriam assumir a posse em março daquele ano; contudo, o presidente Tancredo Neves, adoeceu gravemente e faleceu pouco antes de tomar posse do cargo. Assim, Sarney assumiu a presidência da República em abril.” (BRASIL, 2024)