Resenha do livro Amanhã Amadrugada, da cabo-verdiana Vera Duarte
Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, mais conhecida como Vera Duarte, nasceu em Mindelo, cidade localizada na Ilha de Santiago, no arquipélago cabo-verdiano, em 2 de outubro de 1952. A autora de Amanhã Amadrugada é Juíza Desembargadora, poeta[1] e Membra das Academias Cabo-verdiana de Letras (Cabo Verde), de Ciências de Lisboa (Portugal) e Gloriense de Letras (Brasil).
Ao longo de seus 30 anos de carreira, como poeta, a autora lançou os títulos Amanhã Amadrugada (1993), O Arquipélago da Paixão (2001), Preces e Súplicas ou Os Cânticos da Desesperança (2005), Ejercicios Poéticos (2010), De Risos & Lágrimas (2018), A Reinvenção do Mar (2018), Naranjas en el Mar (2020) e Urdindo Palavras no Silêncio dos Dias (2022). Como romancista, lançou A Candidata (2004), A Matriarca – Uma Estória de Mestiçagens (2017) e A Vénus Crioula (2021). Já no gênero conto, publicou Contos Crepusculares – Metamorfoses (2020), Desassossegos e Acalantos (2022) e José Mãos Limpas e Outros Contos (2023) e Blimundo 1(2024). Enquanto cronista, apresentou A Palavra e os Dias (2013). Na área dos ensaios, publicou Construindo a Utopia (2007). E como autora de prosa de viagem, lançou Cabo Verde, um Roteiro Sentimental – Viajando Pelas Ilhas da Sodad, do Sol e da Morabeza (2019).

Amanhã Amadrugada, de Vera Duarte no Brasil
“Queria
sobre a relva verde dos campos
sentir o teu corpo junto ao meu” (Duarte, 2023, p.59)
O livro Amanhã Amadrugada (2023), da cabo-verdiana Vera Duarte chegou ao Brasil em uma edição especial e comemorativa dos 30 anos desde a sua publicação, em 1993. Publicado pela Editora Nandyala, a obra poética da autora é dividida em 4 cadernos, nos quais se pode observar a delicadeza e a profundidade na poesia da autora ao trazer temáticas tão sensíveis e referências ao arquipélago cabo-verdiano, reafirmando a relevância da autora e de sua obra para o cenário literário de Cabo Verde, aproximando o leitor das vivências, memórias e subjetividades líricas que permeiam na escrita da autora. A edição conta com um posfácio da Professora Simone Caputo Gomes (2023), da Universidade de São Paulo, que detalhe acerca de seu primeiro contato com a Vera Duarte e sobre a poesia da autora, dando um panorama crítico e histórico sobre a obra em questão. O teor intimista com que Gomes escreve o posfácio contribui para uma compreensão mais ampla sobre o impacto da obra da cabo-verdiana e de seu papel na construção da identidade cultural de Cabo Verde, sobretudo na literatura.

A divisão do livro
“Queria
nos doces lençóis da areia
ouvir tua voz marinha sussurrante” (Duarte, 2023, p. 29)
Constituída de 60[2] poemas, Amanhã Amadrugada, chama bastante atenção por ser dividido em 4 Cadernos, em que apresentam uma ordem cronológica decrescente. Tem-se, então, o Caderno I -, datado em 1985; Caderno II, de 1980; Caderno III, de 1975 e 1980; e, por fim, o Caderno IV, de 1975.
No caderno I, por exemplo, todos os poemas levam o nome de algum momento, então, são “15 momentos de um longo poema dedicado ao amor”, ao qual seguem uma ordem cronológica do 1 até o 15, mas chama atenção a repetição do poema 13, já que tem-se o poema 13 e 13-a, fazendo com que essa seção tenha 16 momentos.
No Caderno II, os poemas são chamados de Exercícios Poéticos, enquanto no Caderno III – poemas de bloqueio – e de amor e poesia – e no Caderno IV – de quando se soltaram as amarras –, ambos são Cadernos em que aparecem poemas mais dispersos, visto que não apresentam uma categoria de momentos ou exercícios, como os cadernos anteriores.
Primeiras impressões
“Queria apertar teus lábios
teus olhos, tuas mãos
E te falar de amor
quando tudo em mim grita liberdade” (Duarte, 2023, p.59)
Quando li o livro pela primeira vez, muito chamou a minha atenção o título “Amanhã Amadrugada”, o que me levou a interpretar como uma simbologia ao tempo, em que “madrugada” seria um período de transição e expectativa e o “amanhã” como uma esperança, e esse pensamento foi fundamentado ao longo da leitura, especialmente, nos poemas do Caderno III e IV, datados entre 1975 e 1980. No entanto, quando busquei declarações da própria autora sobre a escolha do nome, percebi que ia muito além dessa interpretação inicial. Segundo Érica Antunes Pereira (2010), em entrevista cedida ao Grupo de Estudos Caboverdianos, Vera Duarte afirmou que a escolha do título
“tem muito a ver com a época histórica em que foi escrito, como a dizer que é um país mesmo no comecinho. É quando o dia começa, mas muito no início do dia; não é o raiar do dia, é antes do raiar do dia. Foi um pouco essa ideia que eu quis transmitir no livro, aquilo que a gente está a começar a construir. É o antes do início da madrugada. É um pouco a linha do novo, do que vai nascer: desde a mais pequena terra, a primeira luzinha que vem“. (Duarte apud Pereira 2011, p.66).
Nessa perspectiva, pode-se perceber que o título não apenas remete a esperança e a expectativa, mas também carrega um ar intermediário de algo que ainda não se concretizou, mas que, aos poucos, vai ganhando forma. Essas ideias de “esperança” e “expectativa”, como já posto, é constante nos poemas de Amanhã Amadrugada. O discurso lírico, como chama Caputo, soa como se perpassasse por fases. Menciono essa questão, pelo fato dos poemas apresentarem uma voz poética, em que fala a todo o momento sobre amor, mas também sobre transformações. É um amor que vem e que vai, e sempre se transforma, vagando entre a incerteza e a afirmação, entre o desejo e a concretização, o que nos leva a pensar em um processo de transformação e de fases..

O primeiro Caderno
“Depois da partida
gradamente ficaste por aí
a povoar-me os sonhos
a fecundar sorrisos e lágrimas
a encher páginas clandestinas
de sentimentos por desvendar
será isto o amor?
esta angústia sem saída?
esta ausência no nada?” (Duarte, 2023, p. 16)
No Caderno I, mais especificamente o Momento III (buganvílias lilases), o eu-lírico chega, inclusive, a mencionar a metamorfoses “Não lhe bastou as metamorfoses em buganvílias lilases” (Duarte, 2023, p. 17), ou até mesmo no Momento IV (faits-divers), quando é posto “A emoção condensada transforma-se em poesia, a dor da ausência motiva-se longas cartas. As metamorfoses impõem-se como única saída quando absolutamente mais nada existe.” (Duarte, 2023, p. 18), e, também, o Momento V (mensagem), quando a figura da borboleta aparece “Sinto-me borboleta a quem recusaram as mais belas flores” (Duarte, 2023, p. 19). Tais imagens e referências nos revelam uma constante transição e transformação interna, seja no amor, na perda ou nas buscas pelas incertezas. A imagem da borboleta, símbolo clássico da metamorfose, carrega muito bem a imagem que o eu-lírico passa sobre as constantes transformações sobre as suas vivências.
A presença constante da partida e da perda
Ainda no Caderno I, chamo atenção para o subtítulo “15 momentos de um longo poema dedicado ao amor”, pois, à primeira vista, pode-se interpretar como uma abordagem linear e consistente sobre o amor, como algo que vai se desdobrando de forma imutável. No entanto, ao ter contato com os poemas, percebe-se que não há amor. Ao contrário, o que pode-se evidenciar é a presença constante da partida e da perda. Essa questão fica evidente no Momento I (de um jardim inexistente) “e a tua ausente proximidade me enlouquece//… quem nos cerca?”, no Momento II (mar e multidão) “Depois da partida//gratamente ficaste por aí// a povoar-me os sonhos// a fecundar sorrisos e lágrimas” Momento VI (desabafo) “Vai e grita pelas achadas imensas // que a vida se conquista // conta a violência e a morte”, no Momento V “é por ti que procuro!”. São 16, na verdade, momentos dedicados ao amor, mas amor esse que não se revela como duradouro, mas sim, um amor, apresentado por Vera Duarte, marcado pela ausência e pela perda.
A ausência, a partida, a separação, a distância são mais presentes do que, propriamente, a vivência amorosa, o que nos leva a pensar o subtítulo como um paradoxo complexo, visto que esse “amor” só ocorre, supostamente, em momentos de perdas e ausências.
Caderno II – Amanhã Amadrugada

[…] E se a sua alma não resiste? Ficarei eu amarrada aos remorsos e sobressaltada por pesadelos vivos? Poderei ser feliz sozinha?…” (Duarte, 2023, p. 42)
Datados na década de 1980, o Caderno II, chamado de “exercícios poéticos”, também segue a mesma estrutura do caderno anterior, enumerado do 1 até o 10, todos os poemas têm “exercícios poéticos” antes do nome e conta com uma epígrafe de Manuel Alegre “Mallarmé tem razão. A prosa não existe”. A epígrafe escolhida para um livro de poesia é muito significativa, visto que em um livro de poesia, essa seção apresenta texto em prosa que, de certa forma, pode ser compreendido como uma forma de reforçar a linearidade entre poesia e prosa.

A ruptura na poesia
Embora o livro Amanhã Amadrugada seja classificado como um livro de poesia, o Caderno I e II, especificamente, chamam bastante atenção pela forma com que os textos são feitos, saindo do convencional ao qual conhece pela forma de poema. A estética dessa parte se aproxima mais da prosa poética. Por isso, a epígrafe chama atenção, porque a autora faz um jogo de palavras entre a prosa e a poesia em sua obra. Recorrendo, novamente, a Pereira, tem-se uma citação de Maria do Carmo Sepúlveda, em que a autora menciona que
Sua escritura é a representação legítima da ruptura com as regras estabelecidas que demarcam fronteiras entre prosa e poesia. Vera poetisa o texto sem se preocupar com sua estrutura física – estende suas palavras sobre a folha em branco, atenta para a beleza que delas irradia e ‘descuidada’ com o desenho por elas formado. (Sepúlveda apud Pereira 2011, p.66).
Essa questão chama bastante atenção, uma vez que ao assumir um lado poeta, a autora reinventa a estrutura poética do que se tem a noção de como seja. É nesse jogo de palavras que Vera Duarte constrói a sua poesia falando dos interiores de Cabo Verde, como no exercício poético 2 (Extrato de viagem imaginada ao interior do país, dos homens e da vida), em que é mencionado a Pedra de Lume, na Ilha do Sal. É através desse jogo que Vera Duarte faz várias menções ao redor do mundo, não só ao mencionar países do continente africano, como Moçambique, Ghana, mas também da América Central, como Nicarágua e América do Sul, ao fazer referências ao Chile.
Caderno III

“E amei-te…
do altar do impossível
das nuvens que o vento não varreu
o meu amor
nascido nas areias das praias solitárias
minhas mãos
vazias de teu ser
confundiram-se na inutilidade de nossas vidas
ainda em raiz proibidas” (Duarte, 2023, p.66)
Já no Caderno III – “poemas de bloqueio – e de amor e ausência”, datados entre 1975 e 1980, observa-se uma construção poética que reflete o processo de formação de Cabo Verde no período pós-independência, mas também o anseio da luta pela libertação. Chamo atenção para o poema “Criança” (Duarte, 2023, p.51), porque é essa metáfora da criança que pode ser interpretada como um país que está em construção, liberto do domínio português. A criança simboliza uma continuidade e construção desse novo país recém-nascido, ansioso e encorajado a construir caminhos de liberdade, esperança e independência. É essa esperança, citada anteriormente, que representa os cabo-verdianos. Essa figura da criança chama bastante atenção por se assemelhar a figura do país em construção. Na primeira estrofe, por exemplo,
“Canto a luz de uma noite
em fogo de mártires incendiada
Canto a luta vitoriosa
num setembro nascida
Canto a flor que sangra
das entranhas sedentas da terra
Canto a madrugada
nos lábios roxos da batalha”
Embora fique claro a exaltação do eu-lírico a luta e os sacrifícios dos mártires que tornaram possível a independência, a continuidade lírica se sobressai o poema não se restringe à memória do conflito, ele avança para a celebração de um futuro promissor, marcado por uma espécie de metáfora da “criança esperança”, visto que os novos cabo-verdianos que darão continuidade na cultura e na reestruturação do país.
Na segunda estrofe,
“E canto-te a ti, criança
filha do povo
nascida nas ilhas
num tempo novo
de homens redimidos”
Fica claro, também, a responsabilidade coletiva de um povo, em que pode-se ver como um novo recomeço que ao povo é atribuída a esperança. O nascimento dessa “criança esperança” representa a continuidade histórica e a responsabilidade coletiva de edificar uma sociedade renovada.
Na terceira e última estrofe aparece, de fato, essa metáfora da “Criança esperança” nos versos “Criança esperança//trazendo em dádiva//o sorriso confiança//num mundo em construção” fica mais concreta, além da figura da criança ser associada a uma esperança renovadora que representa o potencial de transformação e construção de um futuro melhor.
Caderno IV

“[…] Eu esperei-te…
mas o amor não pode esperar
para além da solidão”
O Caderno IV – de quando se soltam as amarras –, datados de 1975, sai de um eu-lírico e as suas experiências de amor e dar lugar a uma voz coletiva. O poema de abertura “O povo em poesia” abre a seção mencionando um eu-lírico que será liberto. O fechamento dessa seção com poemas do ano que é marcado pela independência dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), em 1975, carregam em si um eu-lírico que diz basta ao colonizador, não só em Cabo Verde, mas também no continente africano. É o “Não mais” (Duarte, 2023, p. 74) do segundo poema
Não mais estradas percorridas
Em longos caminhos sofridos
De olhos vendados indo
Pela mão de cegos guiados
Não mais vozes gritantes
Em lentas torturas caladas
No silêncio infernal das celas
Porque os olhos se quiseram abrir
Não mais mortes violentas
Irmãos nossos nós próprios
Nos tarrafais de todas as terras
Por termos ousado saber
As nossas revoltas cresceram
avolumaram-se
formaram uma só
Hoje nossas mãos ternas
e nossos braços calejados
vão libertar-nos das correntes
que não nos deixavam viver
que não nos deixavam amar
que se configura não apenas uma resistência, mas também uma forma de denunciar os terrores causados pelo colonizador. Ele evoca a luta pela liberdade, pela dignidade humana e o fim das atrocidades sofridas, como as torturas e a opressão sistemática. Ao afirmar “não mais”, o eu-lírico deixa claro que o povo está pronto para se libertar do colonizador. Esse movimento de resistência transcende a luta de um indivíduo, tornando-se um clamor coletivo por justiça e emancipação.
O poema “Companheiro” encerra o livro com, novamente, a volta de um amor, simbolizando a busca por renovação e alívio após longos períodos de sofrimento. Ao abordar o fim de uma caminhada dolorosa e injusta, que deixou uma “subterrânea marca de dor”, o eu-lírico expressa o desejo de encontrar o consolo e a força necessários para continuar. O amor é retratado não apenas como uma relação afetiva, mas também como uma força transformadora, capaz de proporcionar descanso e vitalidade, necessários para enfrentar a luta contínua.

Considerações finais
A escolha dos poemas é bem feita, principalmente por seguirem uma sequência e divisão temática em que a autora aborda a solidão, a vida, a morte, o próprio amor, além de dar voz e fazer referências ao arquipélago cabo-verdiano. É possível perceber o “andar” do eu-lírico pelo interior do eu-lírico, conforme Gomes ressalta “Toda a poesia de Vera Duarte viaja pelo ‘interior’ de seu país, roteiro que seguirá também na prosa, revelando ao leitor a história, os costumes, o palpitante da vida nessas ilhas no meio do mundo.” (Gomes, 2023, p.90). Vera Duarte consegue, assim, criar uma ligação profunda entre o indivíduo e a coletividade, entre o íntimo do eu-lírico e as paisagens que ele habita, tornando sua obra uma verdadeira celebração da resistência, da memória e da identidade cabo-verdiana. A autora não apenas utiliza das estrofes e dos versos para falar sobre vivências individuais, mas dar voz a seu povo, garantindo um lugar de destaque tanto no cenário literário de Cabo Verde quanto no panorama literário global, ao ter sua obra publicada e estudada.
Referências Bibliográficas
DUARTE, Vera. Amanhã Amadrugada. Belo Horizonte: Nandyala, 2023. 96 p.
PEREIRA, Érica Antunes. VERA DUARTE: “A MULHER CABO-VERDIANA É UMA PERSONAGEM INTERESSANTE” Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, p. 65-80, jul. 2011.
GOMES, Simone Caputo. Amanhã Amadrugada: 30 anos: a literatura de Vera Duarte de Cabo Verde para o mundo. In: DUARTE, Vera. Amanhã amadrugada. Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2023. p. 87-95.
[1] Tanto na orelha do livro quanto no posfácio AMANHÃ AMADRUGADA 30 ANOS: A LITERATURA DE VERA DUARTE DE CABO VERDE PARA O MUNDO, escrito pela Profa. Simone Caputo Gomes, da USP, a denominação para Vera Duarte é de poeta e não “poetisa”. Gomes explica que “poeta” é como Vera Duarte gosta de ser que chamada.
[2] Como tem o Momento Xlll e Momento Xlll a, totalizam-se 60 poemas.
- Edição brasileira publicada pela Editora Nandyala. ↩︎